segunda-feira, 26 de junho de 2017

Em defesa da lanterna de Doom 3

Originalmente publicado em 11 de maio de 2017

É, eu gosto de Doom. Isso é um eufemismo, na realidade. Uma franquia de jogos de tiro dedicada à liberação sistemática de testosterona via toletes de chumbo na cara de demônios do inferno, com uma trilha sonora chupinhada de clássicos do heavy metal? E eu sou um daqueles nerds antissociais que vive tentando parecer mauzão, só tem roupa preta no armário e prefere mil vezes um bate cabeça e um filme de terror a uma baladinha? Parece que esses jogos foram feitos pra mim!

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Um novo Doom saiu ano passado, um reboot, e ele é muito bom, apesar de diferente dos originais em vários critérios. E, claro, o Doom original e sua sequência são os “formadores de gênero”, a fundação sobre a qual os últimos 25 anos de jogos de tiro foram desenvolvidos, e é bem difícil argumentar que eles foram superados. Mas todo mundo andou falando sobre o reboot de Doom, e o velho Doom tem um legado excepcional que todo mundo conhece. Proponho discutirmos o capítulo esquecido da franquia. Bom, se não esquecido, aquele que as pessoas fazem cara feia quando lembram. Doom 3, lançado em 2004, foi feito em uma época de transição, na qual jogos como Doom haviam se tornado uma relíquia do passado, e a moda agora era o Realismo™ e a Inteligência Artificial™. O Doom original era baseado em um protagonista que conseguia correr tão rápido quanto um foguete, carregar uma dezena de armas pesadas no inventário e enfrentar hordas inimagináveis de inimigos estúpidos. E aí, quando Half-Life introduziu o conceito de inimigos inteligentes ao jogo de tiro, o FPS dos anos 90 passou a ser um gênero de nicho. Doom precisaria evoluir. Logo, veio Doom 3, mais metódico, lento e focado em terror, e ninguém gosta muito dele. Porém, tendo terminado Doom 3 mais uma vez recentemente, argumento que o jogo não é tão ruim quanto o senso comum costuma pensar. É, de fato, o jogo mais fraco da franquia, mas ainda há muito o que se gostar nele.

Algo que sempre é esquecido na hora de falar sobre games é que, em qualquer tipo de obra midiática, é necessário se considerar o contexto e época na qual aquela obra foi feita. E, conforme já observado, Doom 3 precisava se tornar relevante aos tempos sombrios do jogo de tiro do início do século: realismo era a palavra da vez. Mas John Carmack, um rapaz tão esperto que, além de programador-chefe da id Software, também trabalhava com tecnologia de foguetes espaciais, queria também mostrar a tecnologia que ele desenvolveu como programador. A id Tech 4, motor gráfico utilizado na construção de Doom 3, tinha dois truques que atualmente são carne de vaca, mas em 2004 explodiam mentes: as telas interativas e o sistema de “iluminação e sombreamento unificados” (Unified Lighting and Shadowing).

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Pra galerinha que ainda era muito criança em 2004 (e eu me sinto muito velho e mal em digitar essas palavras), é muito difícil imaginar que avanços em tecnologia gráfica sejam lá grande coisa, visto que até os jogos independentes com pouca grana podem ser visualmente deslumbrantes, mas no período da sexta geração, entre 2000 e 2006, coisas simples como fazer uma caixa de papelão cair no chão conforme as leis da física provocava um “WOOOOOOOOOOOW!” na mente de todos os jogadores. Desta maneira, Doom 3 foi pioneiro. Carmack queria, primeiramente, abolir o comando “Usar”, geralmente utilizado em jogos de tiro para interagir com portas, ou qualquer outra coisa no cenário. De acordo com Carmack, ter um botão dedicado a interação não era imersivo o suficiente, e removia o jogador de dentro do mundo do jogo. Então, ele bolou um sistema que permitia que o controle do mouse deixasse de ser uma mira e se tornasse um ponteiro assim que o jogador se aproximava de qualquer tela interativa. Isso se aplicava a qualquer painel para abrir portas, e até mesmo permitia a introdução de alguns quebra-cabeças simples. Por isso, Doom 3 é lotado de telas interativas em todo canto, e uns belos 25% delas são totalmente inúteis. Mas o que realmente alterou o design de Doom 3 foi o sistema de iluminação e sombras.

Talvez eu não saiba explicar como um programador qual é a diferença do sistema de Doom 3 para os anteriores, mas a gente faz a tentativa. Veja bem, antes de Doom 3, a iluminação dos ambientes de jogos era feita através de “mapas de sombra”, ou seja, texturas de sombra coladas por cima das texturas dos próprios ambientes, e estas eram separadas dos ambientes iluminados, ou seja, toda sombra era estática e era raríssimo que personagens (ou qualquer objeto que se movesse) lançasse sombras complexas. Carmack, com a id Tech 4, criou a tecnologia que permitia que iluminação e sombreamento fossem criadas em paralelo, permitindo que luzes fossem dinâmicas e cenas como a da screenshot abaixo pudessem ser criadas. Eu sei que se um programador ou artista de games ler essa descrição vai puxar os cabelos de raiva, mas estou sendo reducionista para que todo mundo entenda e porque eu mesmo só entendo de jogos e não de programação. Acreditem, isso aqui, antes de Doom 3, não era possível, e quando eu tive a oportunidade de jogar, me impressionou demais:

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No entanto, essa tecnologia era cara. Não apenas na questão de custos de desenvolvimento, mas também em questões de processamento e capacidade gráfica necessária. Nessa época, um Pentium 4 era uma máquina doida que até renderizava seu café se você quisesse, não existiam processadores de dois núcleos, e o Doom 3 era usado pra vender as capacidades gráficas da mais nova placa de vídeo, a GeForce 3 (senhor Jesus, como eu estou velho!). Mesmo com todo esse hardware, o próprio jogo não iria aguentar rodar essa simulação de iluminação em espaços muito amplos, logo, ele precisaria utilizar ambientes pequenos e claustrofóbicos. Os níveis gigantescos e labirintos extensos do Doom original não poderiam ser reproduzidos com esse nível de detalhamento. Então, ordem de design do dia, Doom vai passar a focar em terror.

Isso ainda não solucionava a parte da propaganda, infelizmente. Era preciso mostrar esse sistema de iluminação para o mundo com belas screenshots, para garantir a atratividade e convencer todo mundo que comprar uma GeForce 3 era uma boa ideia. Então, o jogo precisa ser escuro, mas melhor ainda! Nós precisamos obrigar o jogador a se apoiar no sistema de iluminação para navegação e combate. Eureka! E se a lanterna não puder ser usada em conjunto com as armas, e aí o jogador é sempre obrigado a escolher entre conseguir enxergar direito ou conseguir se defender? Isso vai obrigar todos a se acostumarem com o sistema de iluminação do próprio jogo e ensiná-los a se guiar através do design sonoro, não?

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Bom, pelo jeito, não. A piada do soldado espacial que não consegue colar sua lanterna na metralhadora com silver tape, ou a do “não existe silver tape em Marte” viralizou pela então primitiva Internet, e muitos jornalistas de games expressaram sua frustração com os ambientes excessivamente escuros e a impossibilidade de se enxergar e se defender ao mesmo tempo. Essa crítica se tornou tão discutida que, no relançamento do jogo em 2012, a id Software decidiu que era melhor deixar com que a lanterna fosse ativada em qualquer momento, apenas com uma barra de energia ditando quanto tempo ela pode ficar ligada. Esta foi a versão do jogo que terminei recentemente, e me ocorre que, na verdade, o uso contínuo da lanterna acaba com a atmosfera que o jogo queria, além de quebrar a interação do jogador com o sistema de iluminação. Este não era um bug a ser consertado, e sim uma decisão de design que influencia toda a experiência do jogo.

O plano da equipe dá certo. Uma coisa que percebi ao jogar novamente é que os ambientes não são tão escuros como lembram. Sempre há algum detalhe do cenário, alguma luz que guia o jogador, ou alguma tela interativa com um interruptor que liga as luzes. Até mesmo nos locais mais escuros, o design de som é incrível e permite que você tente ouvir de onde vêm os inimigos. A maior parte deles possui projéteis que brilham no escuro e não te acertam imediatamente. Infelizmente, a versão de 2012 inclui a lanterna acoplada à roupa do personagem, permitindo que o jogador a use em conjunto com as armas. Isso remove a necessidade de adaptação do jogador às condições adversas, e arruína completamente a atmosfera que o jogo tinha a intenção de passar originalmente. Assim que percebi que meu uso excessivo da lanterna estava estragando a minha experiência, decidi me forçar a entrar em combate e a navegar os corredores industriais da base de Marte sem uso da lanterna, e descobri que o jogo não era tão escuro quanto diziam na época de seu lançamento. Além disso, é perceptível atualmente o quanto essa ambientação influenciou o design de jogos de terror que vieram depois, desde os mais repletos de ação como Dead Space até a mais recente revolução dos independentes com Amnesia: The Dark Descent, Outlast e SOMA. Oras, nesses jogos, nem existe combate e as únicas mecânicas giram em torno do uso e não-uso de lanternas ou modos de visão noturna. Não se pode dizer que Doom 3 não teve uma boa ideia aí.

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Doom 3 é perfeito? Não, de jeito algum. O design de som, apesar de ser incrível no que diz respeito à ambientação, música e efeitos sonoros dos monstros, as armas têm menos impacto do que pistolinhas de ar, com a exceção da maravilhosa escopeta e do rifle de plasma (que ainda tem uma das minhas animações de recarga favoritas). Ele é um pouco longo demais também. E seu combate mais metódico e lento do que qualquer outro jogo da franquia também não faz nenhum favor, apesar de ser divertido o suficiente. Mas a lanterna não é um dos seus defeitos, e essa ideia influenciou toda uma geração de desenvolvedores. Doom 3 não é muito lembrado pelos jogadores por si mesmo, mas todos os outros jogos de horror aprenderam a iluminar seus corredores pela sua tutelagem.

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